Uma pequena história sobre “ela”
Pois então tirou a carteira já rota e bastante usada do bolso de sua calça
Estava vazia, não havia mais nenhum documento, carteira de identidade, de motorista, moeda, dinheiro, fotos, cartões
Nada, estava vazia e desabitada
Só havia mesmo a carteira rota, vazia e velha
Porque a esquecera no bolso de sua calça?
Porque a guardava?
Colocou a carteira em cima da mesa e a deixou ali por um tempo não pensado ou medido
A carteira vazia e rota continuava ali permanecia no mesmo ponto da mesa da casa
intacta
Ao mesmo tempo que já pertencia a inutilidade das coisas que passaram
Continuava ali
Admirava –a com uma certa distância
Silenciosa compunha a casa impregnada de outras coisas, objetos, quinquilharias passadas
Passadas ligada a passados, memórias que demarcavam o espaço dos então viventes.
Os objetos demarcam o tempo das memórias, das lembranças de uma grande maioria de acontecidos que continuam acontecendo, eternizando o presente, a sensação ainda viva em cada coisa, e a necessidade carnal da presença das coisas
olhava a carteira
e
Pensamentos aludiam, várias memórias começavam a emergir daquela simples e velha carteira
Memorias de uma vida do dia a dia
Quantos dinheiros temporários passaram ali
Quantos dinheiros se fisicalizaram em comida, em roupas, em presentes, em coisas
Quantos dinheiros foram produzidos através do trabalho
Havia sido muito usada e necessária
Porque ainda a mantinha em cima da mesa?
Que chave aquela carteira guardava mesmo vazia?
Sentiu que ali naquele objeto, acessório, alguma coisa ainda precisava ser apagada, desmanchada
Resolveu então deixar que ela mesma desaparecesse por sua própria conta
Resolveu deixa-la ali na mesa, como um alguém esquecido de onde estava, esquecido do tempo contado do relógio, do calendário, do compromisso, do valor de si
Deixá-la ali perdendo o significado
Coisas podem existir em uma atemporalidade, desmemoriada de sua função, do que de fato e para que foi construída
Pensava sobre o trânsito, que tal objeto teve em sua vida ativa e economica, aonde mais habitou , sua velocidade enquanto carteira
Sua função de passagem
Passagem sim
Se guarda para passar e quantas passagens se deram na aquisição de uso e desuso
Agora ela estava em cima da mesa, penso por ela
Ela me conduz o pensar lembrando
Enquanto isso olho diretamente para ela me lembro de quanto tempo ela me serviu, guardou coisas imprescindíveis para o mercado, para a feira, para as contas, para a viagem, me assegurando da existência de mais um humano
Carteira objeto de desejo do ladrão
Passa a carteira, passe sua quase toda intimidade registradora
Não posso perder a carteira
Não a perdi nunca nunquinha, sempre colada ao corpo, a bolsa, a pessoa, o bolso
Carregou minha identidade frente a sociedade anônima
Carregou o dinheiro da passagem, depois do pão, do leite, do almoço, dos brinquedos, da diversão e assim seguiu seu modo existência carteira
De um dia para o outro, depois de muito ir e vir e guardar e gastar olhei para ela com desejo de desapegar de experimentar uma outra nova carteira na intenção de mudar, na intenção de prover, na intenção de fluir, na intenção de atrair
Troquei, com o dinheiro cartão que estava guardado nela gastei, comprei uma nova carteira que agora vive em minha bolsa, sacola, bolso, e faz o mesmo trabalho me guardar, objetos preciosos
Documento, cartão bancário, dinheirinho, moedas, papéiszinhos com anotaçõezinhas para não se esquecer depois.
Mas voltamos a falar destas vidas de objetos que vivem colados em nossos corpos sociais
A carteira vazia continuou sobre a mesa, passaram dias, noites de um tempo distendido
Então, vem a me visitar, uma mocinha, chegou em minha casa e sem o pudor, se sentiu livre para me perguntar: e esta carteira bonita? É sua?
Eu disse: foi por muito tempo, e está agora esperando um outro dono
A mocinha não se fez de rogada e espontaneamente falou: posso ficar? Vou ficar feliz de ter uma carteira bonita, e ela será a minha primeira carteira.
A alegria se fez em meus olhos e coração, não precisei fazer nenhuma força, pensar quem poderia querer ficar com ela.
A carteira deixada na mesa, fez seu trabalho de esperar, o tempo ia cuidar de seu destino
E naquela manhã de um dia qualquer aconteceu
Desocupou a mesa, a casa, e despediu de minha pessoa
Deve estar correndo mundo por aí
Coisas, objetos podem sim durar eternidades
Agradeço minha vida com ela, sempre tinha um dinheirinho para o café, para a passagem.
E ainda por cima me rendeu esta história que aqui escrevo para você.
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